quarta-feira, 8 de setembro de 2010

Lei do Orçamento: mais do mesmo (artigo)

Fonte: www.cartamaior.com.br Paulo Kliass
DEBATE ABERTO
Em função da natureza particular de como se processa a relação política em nossas terras, o debate e o acompanhamento da questão orçamentária acabam ficando restritos ao mecanismo das chamadas “emendas parlamentares”. Pouco se discute a respeito das grandes linhas do Orçamento.

Como ocorre em todos os anos, e cumprindo dispositivo constitucional, o governo federal encaminhou ao Congresso Nacional, no último dia de agosto, o Projeto de Lei de Orçamentária Anual (LOA) para o exercício de 2011. No entanto, em função do calendário específico dos anos de renovação de mandato de deputados federais e senadores, o debate mais detalhado da matéria ficará, muito provavelmente, bastante prejudicado. Como a tramitação e a votação da lei devem ocorrer obrigatoriamente até o último dia de dezembro, durante os anos eleitorais a coisa fica complicada.

Os parlamentares ficam comprometidos com as atividades em suas bases, e o ritmo das atividades legislativas é reduzido a quase zero. Além disso, muitos deles saberão a partir de 3 de outubro que não estarão mais na lista dos 513 deputados e 81 senadores integrantes do Congresso Nacional na próxima legislatura. Ou seja, a tradicional votação dessa lei, que ocorre entre o Natal e o Ano Novo, em geral em um plenário carente de participação, tenderá a ficar ainda menos expressiva.

No interior do legislativo, a tramitação ocorre no âmbito de uma Comissão Mista Permanente que se ocupa da matéria orçamentária, popularmente conhecida pela sigla de CMO. A tradição reza que ocorra um revezamento no exercício das duas funções mais importantes: a presidência da Comissão e a relatoria da LOA. Assim, como em 2009 o Presidente foi o Senador Almeida Lima (PMDB/SE) e o Relator foi o Deputado Geraldo Magela (PT/DF), nesse ano a tendência é que o Presidente Deputado Waldemir Moka (PMDB/MS) seja acompanhado na relatoria por algum senador da base do governo, ainda a ser indicado oficialmente.

Em princípio, como toda peça orçamentária a ser examinada e votada pelo poder legislativo, a LOA deveria refletir a maneira pela qual o Estado pretende alocar os recursos obtidos pela via da arrecadação. Ou seja, a partir da determinação das fontes das “receitas”, são estabelecidas as “despesas” de tais recursos. Convém lembrar que uma das bases da criação do Parlamento inglês no século VXI foi justamente o desejo político da sociedade em efetuar um contrapeso ao poder absoluto da monarquia na definição das prioridades do gasto público. E assim, o debate e a votação da peça orçamentária foram um dos mecanismos para dar concretude a tal tendência.

No entanto, a realidade político-institucional em nosso País provoca um enorme distanciamento em relação a essa possibilidade de maior transparência e interferência do conjunto da sociedade nos rumos das questões orçamentárias. Às dificuldades de natureza técnica e específica da matéria, somam-se outras de natureza política e processual, de maneira que as principais decisões acabam sendo implementadas mais como fato consumado, e menos como resultado de um processo de discussão e participação. Na verdade, com exceção dos competentes profissionais integrantes da carreira de orçamento do Planejamento e dos consultores de orçamento do Congresso, poucas pessoas no Brasil conseguem dominar com facilidade o raciocínio, as regras e a linguagem do “orçamentês”. Contam-se nos dedos das mãos os parlamentares que conseguem discutir, de forma efetiva e com qualidade, o conteúdo dos volumes de muitos quilos e milhares de páginas da peça da lei elaborada pelo Poder Executivo.

Em função da natureza particular de como se processa a relação política em nossas terras, o debate e o acompanhamento da questão orçamentária acabam ficando restritos ao mecanismo das chamadas “emendas parlamentares”. Na prática, trata-se de uma forma de compensar o Deputado ou o Senador com a possibilidade de ver incluído no Orçamento o valor relativo a alguma ação associada a seu mandato. E aqui a experiência mostra que a lista de opções é enorme: centro de saúde, escola, asfaltamento de estrada, eletrificação de área do município, hospital, universidade, construção de todo o tipo de equipamento urbano, repasse para entidade associativa, ambulância, frota de ônibus, etc, etc. Assim, o interesse pequeno e mesquinho acaba prevalecendo sobre a importância do debate sobre as prioridades de alocação globais do Orçamento.

Na verdade, pouco se discute a respeito das grandes linhas do Orçamento. E, infelizmente, tudo indica que a questão não será diferente para a LOA 2011. Como diz o título: mais do mesmo. Quem tiver interesse, encontrará todo o material na página da Câmara dos Deputados . O valor total do orçamento da União para o ano que vem é de quase R$ 2 trilhões. Mais precisamente R$ 1.941 bilhões, valores previstos tanto para as rubricas da receita como aquelas do lado da despesa. Apenas a título de comparação, o valor do PIB em 2009 foi de R$ 3,1 tri. O valor chega a ser expressivo: mais de 60% do produto nacional.

No entanto, à medida que o interessado for elaborando perguntas e buscando respostas, a realidade vai se tornando mais complexa. E acaba fornecendo sérios argumentos favoráveis para aqueles que dizem que o nosso orçamento não passa de “peça de ficção”. Não pretendo entrar nesse nível de detalhe e debate aqui nesse pequeno artigo. Mas apenas um exemplo é ilustrativo: desse total de R$ 2 tri, quase 40% (R$ 784 bi) correspondem a um valor sem a menor capacidade de se transformar em despesa efetiva. Para cumprir uma exigência legal, os valores referem-se à rubrica “amortização de dívida”, que significa apenas a renegociação dos valores da dívida pública que vencem ao longo do ano. Ou seja, nada que possa ser realizado como gasto ou investimento. Apenas uma jogada contábil. Em resumo, logo para início de conversa, o valor da LOA deveria ser um pouco superior a R$1,2 tri.

Desse total, um valor chama a atenção: R$ 170 bilhões para pagamento de juros e encargos da dívida! Uma verdadeira loucura, fruto dessa política econômica assentada na manutenção da taxa de juros oficial, a SELIC, em níveis estratosféricos há muitos e muitos anos. E um outro dado que também preocupa é o fato de que essa rubrica sofreu uma elevação superior a 50% em relação à proposta de lei enviada no ano passado. Ou seja, enquanto o valor total das despesas correntes cresceu de R$ 882 bi para R$ 1.040 bi (aumento de 18%), o crescimento dos valores para pagamento de juros foi de 55% - de R$ 110 bi foi para os R$ 170 bi. Isso, sim, reflete de forma cristalina o que a área econômica do governo considera como “prioridade” na execução orçamentária. A previsão para o salário mínimo, por exemplo, não teve aumento real praticamente nenhum: apenas o crescimento da economia, de R$ 510 para R$ 538.

Caso somarmos os valores previstos no Projeto de Lei para as áreas essenciais de saúde, educação e desenvolvimento social (inclusive o Fome Zero), chegaremos a um valor quase igual ao total relativo ao pagamento de juros: R$ 178 bilhões. Além disso, como acontece em todos os anos, o Ministério que recebe a maior dotação é o da Previdência Social, com o valor de R$ 288 bilhões. O número pode parecer elevado, mas o pequeno “detalhe” é que tais valores referem-se a aposentadorias, pensões e outros benefícios para mais de 30 milhões de pessoas e famílias no País, sendo que a metade refere-se a pagamentos mensais de até 1 salário mínimo.

Mas a cada ano o debate não muda de enredo. Ao invés de discutir o porquê da existência de premissas como a de atingir a meta do superávit primário superior a 3% do PIB ou a alocação de valores em pagamento de juros em patamar superior às despesas na área social, a pauta oferecida pelos cadernos de economia da grande mídia é outra. E a velha cantilena se repete a cada segundo semestre de todos os anos. A pseudo enormidade do gasto público e a “necessidade indiscutível” de reduzir o espaço para a ação do Estado na economia. A eterna ladainha a respeito de uma suposta imensidão da carga tributária vigente em nossas terras. E os pontos sensíveis do problema acabam se restringindo ao cardápio de sempre: salário mínimo e previdência social.

Despesas com pagamento de juros da dívida pública, concessão de subsídios para empresas, benefícios de isenção de impostos para vários setores, recursos alocados para cobertura de sonegação de impostos, empréstimos de bancos oficiais a juros favorecidos – nada disso conta no debate a respeito de onde cortar gastos! A questão se resume às contas da Previdência (prometo um artigo apenas sobre esse tema espinhoso) e à definição do valor do salário mínimo. E as autoridades já vêm com o argumento prontinho, sacado ali debaixo da manga da camisa: em 2011, para cada R$ 1 de aumento do salário mínimo, o orçamento necessitará de mais R$ 286 milhões. Só que ninguém diz que para obter o mesmo resultado, bastaria a taxa de juros SELIC ser reduzida dos atuais 10,75% para 10,749% ao ano. Ou seja, se essa taxa baixasse para 10,74% seria suficiente para aumentar o valor do salário mínimo dos previstos R$ 538 na LOA para hipotéticos R$ 550.

A conformação do orçamento acaba sendo o verdadeiro reflexo de como a sociedade pretende encarar as suas prioridades na alocação do gasto público. E, infelizmente, tudo nos leva a crer que a lógica do grande capital, do mercado financeiro e dos poderosos continua a prevalecer.

Regulamentar a previsão constitucional para taxar as grandes fortunas? Instituir impostos sobre a entrada de capital estrangeiro especulativo e de curto prazo? Não, não, nem pensar. A estratégia para gerar o superávit primário continua a ser, como sempre foi, a de cortar na área social.

Finalmente, é importante lembrarmos de outro elemento importante do debate. Trata-se da natureza mesma do orçamento no Brasil. Ao contrário de outros países, aqui a peça orçamentária não tem caráter obrigatório, no sentido de sua execução pelo Poder Executivo. No linguajar específico, nosso orçamento tem natureza “autorizativa”. Ou seja, o Congresso vota, mas o governo tem uma grande capacidade discricionária na execução do orçamento ao longo do ano. E com isso surgem as velhas práticas como o “contingenciamento”, que permite ao Executivo congelar os recursos inicialmente previstos para despesa. Os valores acabam sendo utilizados para fazer caixa e cumprir as metas de superávit primário. Ou quando eles são liberados, o fato ocorre no final do ano, de forma que as exigências administrativas para fazer concorrência e licitação impedem o gasto no exercício. Sobra dinheiro no caixa e faltam serviços públicos na ponta.

Paulo Kliass é Especialista em Políticas Públicas e Gestão Governamental, carreira do governo federal e doutor em Economia pela Universidade de Paris 10.

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LINDA VOZ COM ÓTIMO TEXTO - Em 2005, Elisa Lucinda escreveu poema-protesto, que é recitado, em parte, por Ana Carolina (acima). O texto completo do 'manifesto' está disponível na Internet.

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