Fonte: Revista Fórum (Por Leonardo Fuhrmann, 30 de julho de 2010 - 18h29)
Assunto banal em época de eleição, necessidade de uma reforma tributáriaé pregada sem explicações sobre o que se quer alterar. Mas certamente o modelo dos grandes não é o mesmo dos pequenos...
Uma rádio paulistana brada durante vários momentos de sua programação: “Brasil, o país dos impostos”. No centro de São Paulo, os números saltam no impostômetro, painel criado pela Associação Comercial de São Paulo para mostrar à população o quanto é pago de impostos por ano. Em um protesto, um posto de gasolina vende o combustível sem o valor dos impostos durante um dia, para mostrar os excessos da carga tributária. A necessidade de uma reforma tributária, muitas vezes sem explicações sobre o que se quer alterar, é um assunto repetido à exaustão, principalmente em anos eleitorais, como é o caso do atual.
No meio deste debate, não ficam tão claros os problemas para o custeamento da máquina pública e a crescente leniência entre políticos e membros do Judiciário com a sonegação fiscal, que lesa os cofres municipal, estadual e federal e, hoje praticamente descriminalizada, é rotina entre algumas das principais empresas do país.
Para o mestre em Finanças Públicas Amir Khair, os impostos têm reforçado a desigualdade social no país, pois os pobres pagam proporcionalmente mais do que os ricos. “Quem ganha menos de 2 salários mínimos paga 49% de seus rendimentos em tributos, enquanto o percentual não passa de 26% para quem ganha mais de 20 salários mínimos”, explica. Esta distorção ocorre porque os tributos são cobrados com base no consumo e não em razão dos rendimentos e do patrimônio do cidadão. São os casos do ICMS (Imposto sobre a Circulação de Mercadoria e Serviços), do PIS (Programa de Integração Social), do Cofins (Contribuição para o Financiamento da Seguridade Social), do IPI (Imposto sobre Produto Industrializado) e do ISS (Imposto Sobre Serviços).
O Imposto sobre Grandes Fortunas, previsto na Constituição de 1988, espera desde então por uma lei complementar que o regulamente, para que possa finalmente passar a ser cobrado. Em fevereiro deste ano, a proposta do senador Paulo Paim (PT-RS) para a criação do imposto foi arquivada pela Comissão de Assuntos Econômicos do Senado, tendo apenas o voto do senador Eduardo Suplicy (PT-SP) como favorável ao novo tributo.
O senador Antônio Carlos Magalhães Junior (DEM-BA), relator do projeto, disse que a proposta que taxava em 1% patrimônios acima de R$ 10 milhões (valor que seria corrigido anualmente com base na inflação) era um “retrocesso”. Suplente do pai, morto em 2007, ACM Júnior afirmou, em sua declaração de bens à Justiça Eleitoral em 2002, ter mais de R$ 4 milhões em imóveis e investimentos, além de participação societária de valor não divulgado em empresas. Flexa Ribeiro (PSDB-PA) justificou o voto contrário com a afirmação de que “a carga tributária no Brasil já é muito elevada”. Em 2002, o tucano paraense, então suplente também, declarava ter mais de R$ 8 milhões em bens.
Um outro projeto de lei complementar – este de autoria dos deputados Chico Alencar (Psol-RJ), Luciana Genro (Psol-RS) e Ivan Valente (Psol-SP) – foi aprovado em junho pela Comissão de Constituição e Justiça da Câmara dos Deputados, com parecer favorável do deputado Régis de Oliveira (PSC-SP). Para Oliveira, o projeto faz justiça fiscal na medida em que tributa quem tem patrimônio maior. “Estamos preenchendo uma lacuna, criando esse imposto que é devido, é justo, responde ao princípio da capacidade contributiva. A Lei de Responsabilidade Fiscal obriga o Poder Público a exercer sua competência tributária em toda sua magnitude. A União está em débito com essa competência dela”, argumentou o deputado, segundo informações da Agência Câmara. A proposta, que ainda precisa ser aprovada pela Comissão de Finanças e Tributação e pelo plenário para seguir para o Senado, tributa os patrimônios acima de R$ 2 milhões. Para o patrimônio entre R$ 2 milhões e R$ 5 milhões, a taxação será de 1%. Entre R$ 5 milhões e R$ 10 milhões, ela será de 2%. De R$ 10 milhões a R$ 20 milhões, de 3%. De R$ 20 milhões a R$ 50 milhões, de 4%; e de 5% para fortunas superiores a R$ 50 milhões.
Segundo Khair, a mudança no ICMS, principal tributo cobrado do consumidor no momento da compra, também não é simples. Ele destaca que em torno de 83% da receita dos estados hoje vem do imposto, que também é repassado em parte aos municípios. “Existe a proposta de cobrá-lo no destino, o que acabaria com a guerra fiscal, mas as bancadas dos estados que perderiam receita não deixam a proposta seguir em frente. Se a mudança fosse aprovada, o tributo teria de aumentar para compensar estas perdas”, acredita. Os estados perderiam também o poder de oferecer benefícios fiscais para as empresas se instalarem em sua circunscrição, medida usada principalmente para atrair empresas. “Na verdade, a lei já impede a concessão de isenções pelos estados sem que cada caso seja analisado pelos demais secretários estaduais de Finanças no Conselho Nacional de Política Fazendária (Confaz), mas esta lei não é cumprida”, afirma.
Juros e cobrança dos devedores
Khair considera que a carga tributária bruta brasileira é de fato alta, mas que o problema se deve em grande parte à política econômica, que destina 6% do PIB (Produto Interno Bruto) para o pagamento de juros da dívida interna. “O Brasil tem uma das maiores taxas de juros do mundo, que é aplicada nos títulos públicos. Uma parte considerável do que é arrecadado acaba sendo aplicada no pagamento destes juros”, afirma. Segundo ele, se for considerar apenas o que sobra para ser aplicado no país, a carga tributária líquida, a taxa não é tão alta assim em relação a outros países.
Segundo o professor, para analisar a carga tributária de um país é preciso analisar também quais são as obrigações do Estado previstas pela Constituição. No caso do Brasil, a Saúde e a Previdência Social são universais (direito garantido mesmo a quem não é contribuinte) e a Educação também precisa ser garantida a todos os cidadãos até o Ensino Médio. “Em países como o Japão e os Estados Unidos, estas estruturas são privadas, com participação do governo, o que torna o gasto público menor”, compara. Khair lembra ainda que, para que a carga tributária diminua, é preciso que todos os contribuintes paguem os impostos que devem. Como consultor, ele tem aconselhado as prefeituras e governos estaduais a protestarem os devedores de tributos. “A medida tem forçado grandes devedores, em especial empresas, a pagar estas dívidas para não ficar com o `nome sujo`”, explica. A inscrição de devedores de impostos no cadastro de inadimplentes é uma medida considerada legal pelo Conselho Nacional de Justiça (CNJ).
O advogado Luiz Tarcísio Teixeira Ferreira, que foi secretário dos Negócios Jurídicos da Prefeitura de São Paulo durante a gestão Marta Suplicy, defende que o poder público precisa aprimorar os seus mecanismos de cobrança, não só com leis, mas também investir em um trabalho de inteligência tributária, com a união de esforços das secretarias de Finanças e Negócios Jurídicos. “Os atos das duas secretarias não podem ser separados por conta muitas vezes de disputas políticas. Negócios Jurídicos pensa só em questões processuais e Finanças em arrecadação”, diz. Ferreira aponta a análise dos cadastros de devedores e a discussão de estratégias de cobrança como pontos essenciais deste serviço de inteligência. “Os grandes devedores só existem por conta de décadas de omissão na cobrança de tributos atrasados. Como muitos deles são grandes empresas e instituições, também são capazes de contratar bons advogados, que vão protelar na Justiça ao máximo o pagamento destas dívidas”, argumenta.
Ele destaca que o custo para a cobrança a pequenos e grandes devedores é muito parecido e que, por isso, é importante que o poder público priorize para receber as dívidas de maior valor. “Muitas vezes são empresas que tiram vantagem do fato de não pagar impostos. É preciso também que os entes federativos troquem informações sobre os devedores, para que a sonegação não vire um instrumento para oferecer melhores preços a outros municípios e estados em concorrências públicas”, diz.
As dívidas de Imposto Predial e Territorial Urbano (IPTU) de São Paulo são um exemplo da falta de uma política mais efetiva de cobrança. No começo da década, os movimentos de sem-teto passaram a priorizar a ocupação de edifícios vazios, que tinham uma dívida deste tributo na prefeitura maior do que o valor venal do imóvel. “O IPTU tem a peculiaridade de ter o imóvel como uma garantia de pagamento da dívida. Quando a dívida ultrapassa o valor do bem, a garantia deixa de existir”, diz Ferreira. Os movimentos sociais dizem ter listado, na época, só no centro da capital paulista, mais de 400 imóveis nesta situação.
No ano passado, uma Comissão Parlamentar de Inquérito (CPI) da Câmara Municipal da capital paulista investigou a cobrança do IPTU. Além de listar grandes devedores, o relatório apresentado pelo vereador Donato (PT) e aprovado pela comissão presidida pelo vereador Aurélio Miguel (PR) apontou falhas cometidas por grandes empresas para pagar menos tributos. Shoppings, indústrias, supermercados, hotéis e concessionárias de veículos de grandes redes foram flagrados com construções maiores do que o indicado na planta original em poder da prefeitura, fruto de mudanças de projeto ou reformas, além de ocuparem irregularmente áreas públicas. Desta forma, pagavam o imposto com base apenas em uma parte da área que de fato foi construída. Ao final dos trabalhos, a CPI conseguiu a inclusão de 3,4 milhões de metros quadrados de área construída na planta oficial da cidade, o que fez com que fossem recolhidos mais de R$ 180 milhões aos cofres públicos municipais em IPTU.
Brasil, o país dos impostos sonegados
Não bastasse a dificuldade que o Poder Executivo tem para cobrar as dívidas tributárias e fiscalizar o pagamento dos tributos, o Ministério Público também não consegue garantir a punição de sonegadores, nem mesmo nos casos em que eles demonstram agir de má-fé para obter vantagens pela sonegação e repetem reiteradamente o crime. Promotores de Justiça e procuradores da República que atuam no tema reclamam da súmula vinculante do STF (Supremo Tribunal Federal) que só permite a instauração de processo criminal contra sonegadores depois da conclusão do processo administrativo, e de leis que impedem a punição para o crime quando o réu, até mesmo depois de condenado, resolve pagar os tributos devidos. “É como se um estelionatário ou o autor de um furto não pudesse ser punido pelo seu crime se devolvesse à vítima o valor que lhe foi subtraído”, compara o procurador Douglas Fischer, da Procuradoria Regional da República da 4ª Região, com sede em Porto Alegre (RS).
Fischer é autor de uma representação junto à Procuradoria Geral da República contra a Lei 11.941/2009, que extingue a punição para quem paga em qualquer momento o imposto devido. Nela, o procurador argumenta que a medida estimula o cidadão a não cumprir com o seu dever de pagar impostos e isto fere interesses sociais e coletivos garantidos pela Constituição. Afirma ainda que o sonegador é beneficiado em relação a quem comete crimes semelhantes, muitas vezes, inclusive, com menor impacto social. Com base na argumentação de Fischer, a então procuradora-geral da República, Deborah Macedo Duprat de Brito Pereira, entrou com uma ação direta de inconstitucionalidade (4.273/09) contra a referida lei.
O procurador contesta também o argumento de que estas anistias – comuns nos governos dos presidentes Fernando Collor de Mello, Fernando Henrique Cardoso e Luiz Inácio Lula da Silva – possibilitam um aumento da arrecadação. “A experiência internacional demonstra que leis deste tipo estimulam a sonegação e provocam uma queda na arrecadação tributária espontânea”, afirma. Fischer demonstra preocupação também com o projeto de lei 5.228/05, do deputado José Mentor (PT-SP), que dá anistia fiscal e extingue a punibilidade criminal para dinheiro não declarado que era mantido no exterior e que foi repatriado. Estima-se um da ordem (faltam palavras, aqui, não?) de R$ 100 bilhões que é mantido ilegalmente no exterior por brasileiros. “Apesar de ter artigos que excluem desta anistia a pessoa condenada por crimes contra a administração pública, traficantes (de drogas, armas, órgãos e pessoas) e outros, a anistia acaba sendo um convite para a lavagem de dinheiro, pois quem mandou o dinheiro irregularmente para fora do país vai pagar menos impostos do que as pessoas que o mantiveram aqui”, explica.
Fischer afirma que já existe jurisprudência no Superior Tribunal de Justiça, que impede a punição para crimes relacionados à sonegação como o descaminho (conhecido popularmente e de forma equivocada como contrabando). Ele acredita que esta interpretação pode inocentar inclusive os envolvidos na importação irregular de produtos para a boutique de luxo Daslu. “Será muito ruim se isto de fato ocorrer, pois trata-se de um caso emblemático”, opina. A dona da Daslu, Eliane Tranquesi, e seu irmão e ex-diretor financeiro da empresa, Antonio Carlos Piva de Albuquerque, foram condenados em primeira instância a 94 anos e seis meses de prisão.
Para o procurador da República Andrey Borges de Mendonça, do Ministério Público Federal em Ribeirão Preto, no interior paulista, existe uma espécie de leniência social em relação aos crimes econômicos e de sonegação, que trata estes atos ilícitos como algo de menor perigo à sociedade. “É um pensamento que existe entre os legisladores e dentro do Judiciário, que acaba por tratar o processo penal apenas como uma forma de execução fiscal”, argumenta. Segundo ele, a súmula vinculante que trata de crimes materiais passou a ser estendida também para os crimes formais (considerados consumados independentemente da comprovação de sua conclusão), como a apropriação indébita previdenciária. Este entendimento paralisou uma ação também emblemática em que Mendonça atuava, na qual a Smar – empresa que tem Carlos Roberto Liboni, que foi vice-presidente da Federação das Indústrias do Estado de São Paulo (Fiesp), como sócio – é acusada de sonegar mais de R$ 1 bilhão em tributos em 20 anos.
O promotor de Justiça Fernando Arruda, do Grupo de Atuação Especial de Repressão aos Crimes de Sonegação Fiscal (Gaesf) do Ministério Público do Estado de São Paulo, apresentou uma proposta de anteprojeto de lei que transforma todos os crimes relacionados à sonegação em formais. Seria uma forma de alterar a jurisprudência criada a partir da súmula vinculante do STF. “Muitos juízes estão inclusive trancando inquéritos criminais, o que prejudica a coleta de provas. Nos anos em que tramita o processo administrativo, muitas provas podem ser destruídas”, alerta. Segundo o promotor, o inquérito policial muitas vezes também ajuda a instrução do processo administrativo. “A polícia e o Ministério Público fazem oitivas de testemunhas, buscas e apreensões, e podem pedir quebras de sigilo fiscal e telefônico, que podem ajudar a instruir o processo administrativo. Assim, poderíamos reverter algumas decisões administrativas em que o sonegador é absolvido por falta de provas”, explica.
Arruda sustenta que muitas das anistias ou remissões que são dadas pelos governos são irregulares, porque a lei impede que estes benefícios sejam dados a crimes ou infrações que tenham sido cometidos com dolo (intenção) e tenham sido acobertados coma prática de fraudes ou simulações. Além do mais, por lei, as remissões precisam ser analisadas caso a caso. O promotor tem pedido ao Executivo que informe sempre da conclusão de processos administrativos para evitar a prescrição de crimes fiscais. A agilidade é fundamental, pois a prescrição dos crimes tem como base a pena, que no caso de sonegação é de 2 a 5 anos de prisão. A prescrição conta a partir da conclusão do processo administrativo, que dura até 5 anos.
O Gaesf atua em casos de sonegação de ISS, em geral com empresas que atuam em uma cidade, mas são registradas em outra em que o percentual cobrado no tributo é menor. Os investigados são principalmente empresas de informática, segurança, estacionamentos e construtoras. Em casos que envolvem ICMS, os investigados na capital são em boa parte os atacadistas, importadores, supermercados e empresas do setor químico. No interior, frigoríficos, fábricas de bebidas e usinas de álcool. Mais uma vez, os principais acusados são empresas de grande porte.
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LINDA VOZ COM ÓTIMO TEXTO - Em 2005, Elisa Lucinda escreveu poema-protesto, que é recitado, em parte, por Ana Carolina (acima). O texto completo do 'manifesto' está disponível na Internet.
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